Segundo diversos sites estrangeiros sobre origens de sobrenomes, “Kempes” derivaria de antiga expressão germânica (segundo alguns sites, do inglês antigo, outros do normando, para outros do anglo-saxão) por sua vez derivada do latim campus, “campo”, mas ganhando sentido um pouco diferente: designaria desde um soldado raso de um campo de batalha a lutador (Kampf, “luta” em alemão, seria um cognato) e poderia significar também “campeão”. Bom, todos esses sentidos cairiam bem ao mais ilustre homem a carregar atualmente o sobrenome. Homem que hoje se torna sessentão.
Mario Alberto Kempes Chiodi herdou a linhagem de um imigrante alemão. Da parte materna, o sangue era italiano. Veio dos campos daqueles pampas do interior cordobês (sua cidade natal de Bell Ville fica a três horas de ônibus da capital) para brilhar na seleção, onde começou como um soldado raso e, ainda garoto, terminou como campeão mundial, principal jogador do primeiro título hermano em Copas. Só faltou seu sobrenome significar também El Matador, que já surgiu em um time apelidado de La Gloria: o Instituto, um dos principais clubes de sua província natal de Córdoba.
O pai, também chamado Mario (daí o apelido Marito do filho) já havia sido jogador de futebol do nanico Leones e não tivera problema em conquistar uma certa Eglis Chiodi, de família torcedora justo do rival Sarmiento. Foi o primeiro a detectar talento no primogênito. Os primeiros clubes foram o Platense e o Talleres, ambos de Bell Ville – não confundir com o poderoso Talleres de Córdoba. Paralelamente, trabalhava com o pai em uma carpintaria, cujo dono, um tal Eduardo Tossolini, também era dono de um clube de futebol, o Bell. Ao descobrir que um garoto de sobrenome Kempes arrebentava na base do Talleres, conversou com Mario pai e combinaram que o garoto jogaria no Bell.
Ainda nesses primórdios, chegou a participar de treinos do Newell’s, que visitava Bell Ville e tentou levá-lo, mas a oferta não agradou Mario pai, que também não autorizou o filho a acertar com outro interessado, o Nacional uruguaio, pois ainda faltava um ano para Marito completar o colegial. O primeiro acerto foi com o Instituto, cujo presidente era amigo pessoal de Tossolini, ouviu falar do garoto e, visitando a carpintaria, aceitou a contraproposta de Tossolini: teria Kempes de graça se ele não fizesse dois gols em 15 minutos de teste. Uma mentira também fez parte dessa história: Kempes afirmou chamar-se Mario Aguilera ao treinador, que, não o tendo nas planilhas, testou-o primeiro.
Era um amistoso contra o Argentinos Central. O Instituto ganhou por 4-0 com o tal “Aguilera” marcando todos. Foi mantido para um quadrangular com a dupla principal cordobesa, Belgrano e Talleres, e também com o Central Córdoba. O Instituto venceu tudo (1-0 no Belgrano, 3-1 no Talleres, 3-0 no Central) e Kempes marcou em todos. Em 10 de março de 1972, enfim assinava contrato, em troca do pagamento pela instalação de iluminação artificial no estádio do Bell. Em La Gloria, reeditaria parceria com outro célebre natural de Bell Ville: Osvaldo Ardiles. Se conheciam desde os 13 anos. No segundo semestre, enquanto se formava no colegial, Kempes ajudava o Instituto, historicamente a terceira força cordobesa, a voltar a ser campeão provincial depois de seis anos.
As finais foram contra o Belgrano na semana natalina: 2-0 com dois dele na ida e 5-2 com três do garoto na volta. Contudo, a repercussão foi pouquíssima: não houve cobertura de nenhuma mídia daquelas finais por conta de greves típicas daquele período político conturbado com o fim da ditadura de Lanusse e a volta de Perón do exílio. A taça serviu ao menos para o Instituto disputar pela primeira vez o Torneio Nacional, criado em 1967 para reunir os melhores times do interior com os melhores colocados do campeonato argentino (renomeado “metropolitano” enquanto o Nacional existiu, até 1985). Aquele celebrado elenco da Gloria tinha, além dele e de Ardiles, um outro futuro campeão mundial em 1978, Miguel Oviedo. Mas na época a figura de mais prestígio era Daniel Willington, craque do vizinho Talleres e protagonista naquele que por muito tempo foi o único título do Vélez na elite, em 1968: leia aqui.
O Instituto não saiu de um 8º lugar no seu grupo e mais perdeu que ganhou. Mas Kempes se sobressaiu: fez 11 gols em 13 jogos e terminou em terceiro na artilharia. Acabou convocado pela seleção, ainda que sem pompa: era para um elenco “B” formado para vencer a Bolívia em La Paz para não correr riscos de ficar de fora da Copa 1974 (a Albiceleste não havia se classificado para a de 1970 e se não se classificasse de novo teria sua capacidade moral de sediar 1978 questionada. Eram tempos em que a FIFA ainda não era uma empresa). Ainda assim, Kempes foi o segundo jogador do futebol cordobês aproveitado pela seleção e o primeiro em mais de meio século.
A chamada “Seleção Fantasma” marcou a vinda de outros futuros campeões mundiais como Ubaldo Fillol, Ricardo Bochini e Marcelo Trobbiani e venceu por 1-0 (falamos aqui). Kempes já havia sido aproveitado pelo técnico dela, Miguel Ignomiriello, na seleção juvenil em um torneio em Cannes em 1972. Foi o último do futebol cordobês na seleção antes de César Menotti ser técnico dela. Menotti foi o único a valorizar largamente o futebol do interior, que vivia uma geração de ouro (confira) como todo o país. Em 1974, Marito passou ao Rosario Central, campeão daquele Torneio Nacional. Poderia ter ido a outro auriazul, o Boca, com quem simpatizava na infância embora se assustasse pelo fanatismo excessivo do avô pelo mesmo clube. Mas faltou a assinatura do presidente xeneize Alberto J. Armando.
“Como este temos cem em La Candela”, afirmou o dirigente em relação ao local de treinamentos de base boquense (já no ocaso da carreira, em 1984, observado pelo futebol dos EUA, quase atuou um amistoso pelo clube, que excursionava por lá). O Central o contratou por um então recorde, 130 milhões de pesos velhos. Ali, virou El Guaso, quase uma tradução do sobrenome Kempes: é uma gíria para quem é campesino, rústico e afins. Junto com o colega Aldo Poy (primo do antigo ídolo são-paulino José Poy), se tornou em 1974 o primeiro convocado a uma Copa a partir do futebol rosarino. Passou em branco no mundial da Alemanha mas em seguida triunfou no novo clube: no Nacional de 1974, foi artilheiro com 25 gols em 25 jogos e o time foi vice por um mísero ponto a menos que o San Lorenzo.
Paralelamente, seguia na seleção “interiorana” de Menotti a ponto de ser quem mais jogou (23 vezes) e marcou (14) pela Argentina vindo do Rosario Central. É também o maior artilheiro dos canallas na elite, com 94 gols. 7, no clássico com o Newell’s, o mais importante no 1-0 de 11 de abril de 1975, que definia quem avançava às semis da Libertadores, na época travada em triangulares. O Central só não foi à decisão nos critérios de desempate com o grande Independiente, vencedor das três edições anteriores do torneio e que viria a faturar o tetra. Seu último jogo pelos auriazuis também foi um clássico, um 0-0 em 1 de agosto de 1976 pelo Metropolitano, do qual foi artilheiro com 21 gols em 22 jogos.
Foi nessa época que virou El Matador, apelido criado pelo narrador José María Muñoz: “me reprovava porque não fazia muitos gols de visitante. E me prometeu que se convertesse dois gols de visitante no jogo seguinte ia me pôr um apelido. Jogamos contra o Banfield, fiz 3 e aí ganhei o mote”, explicou – na verdade, foram dois em vitória por 3-1, que bastaram. Acertou com o Valencia, então treinado por Alfredo Di Stéfano e manteve o poder de fogo, sendo artilheiro da liga logo na primeira temporada e também na segunda por um clube que terminava sempre longe das cabeças. Menotti, que não o usava desde 1976 (na época, ir à Europa só fazia afastar o jogador da seleção), resolveu convoca-lo ao mundial de 1978, para o qual Kempes foi o único “estrangeiro” da seleção. A estreia contra a Hungria na Copa marcou o retorno dele à Albiceleste após dois anos.
A organização pensava em facilitar a vida da seleção, programando todos os seus jogos da fase inicial para Buenos Aires. Se terminasse líder da chave, ela seguiria sempre fazendo jogos só na capital. Mas a derrota para a Itália deu a liderança e a benesse de jogar todas as partidas no Monumental de Núñez à Azzurra. A Argentina teria que fazer seus três jogos na segunda fase de grupos em Rosario. Para Kempes, foi certo por linhas tortas, pois só desencantou quando passou a jogar no Gigante de Arroyito, casa do seu antigo Rosario Central. Na estreia na segunda fase, dois gols nos 2-0 na Polônia, de cabeça e livrando-se do marcador em jogada do “parceiro” Ardiles.
Outros dois vieram no polêmico 6-0 no Peru, tocando na saída do goleiro após triangular com Américo Gallego no primeiro e Ardiles no outro, que foi o terceiro. E outros dois na final. No primeiro, recebeu a bola perto de meia-lua, irrompendo entre marcadores pela grande área holandesa e tocou na saída do goleiro. No outro, livrou-se de dois carrinhos, chutou no goleiro e mandou para as redes no rebote antes que a bola fosse afastada por dois laranjas. Kempes tinha só 23 anos mas, ao contrário dos mais experientes Sergio Agüero, Gonzalo Higuaín e Rodrigo Palacio, cujas atuações no mundial do Brasil mostram que são jogadores bons em seus clubes, soube jogar uma Copa e uma final de Copa. Copa cuja taça, ironicamente, seu artilheiro nem conseguiu tocar nos festejos.
Aquela foi até hoje a única vitória argentina em nove jogos contra a Holanda (na semana passada, foi oficialmente empate). Kempes seguiu bem no Valencia, sendo hoje nome de arquibancada no Mestalla. Marcou os dois gols da final da Copa do Rei sobre o Real Madrid em 1979 e venceu a Recopa e a Supercopa Europeias em 1980. Mas de início não se manteve na seleção, só voltando para o Mundialito de janeiro de 1981. Acertou então um empréstimo com o River. Ele e o técnico Di Stéfano foram a resposta dos Millonarios ao sucesso de Maradona no Boca. O torcedor que contribuiu financeiramente para os 3,5 milhões de dólares da transferência teve ingresso de arquibancada por dez anos no clube.
Atrapalhado por lesões, Kempes teve uma sequência irregular de bons jogos no River, mas o saldo esportivo foi positivo: após uma primeira fase cambaleante, o River obteve o título nacional, com direito a vencer o Boca na Bombonera de virada “no jogo em que Kempes foi mais que Maradona”: Maradona fez o primeiro. Kempes, engando a barreira em uma cobrança de falta, empatou. Daniel Passarella virou, Jorge García faria 3-1 e o atual técnico palmeirense Ricardo Gareca só conseguiu diminuir. El Matador também fez, de cabeça, o gol do título, no 1-0 sobre o Ferro Carril Oeste na final. O que lhe tirou do River foi a crise financeira provocada pela ruína deixada pela ditadura.
Ainda em junho de 1981, o peso já estava desvalorizado em 30% em relação ao dólar, moeda usada para o empréstimo de Kempes. O River não conseguiu paga-lo (outros clubes poderosos viveram o mesmo, como Boca, Vélez, Racing e Talleres, daí que os anos 80 tiveram muitos campeões incomuns) e teve de devolve-lo ao Valencia após a Copa de 1982, com a crise acentuada pela derrota nas Malvinas e demoraria cinco anos para voltar a ser campeão, maior enormidade vivida em Núñez entre 1975 e 2008. Kempes também não ia bem. Não tornou a marcar gols pela seleção, passando em branco nos doze jogos seguintes que fez após a final de 1978, seus últimos pela Argentina. Terminou aquém do que poderia ter sido: assim como Rivaldo passou por Uzbequistão e Angola, Marito jogou pela Áustria e Indonésia no ocaso. Mas o que foi bastou para eterniza-lo no futebol. Sobretudo no torneio que realmente interessa.
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