Ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é muito melhor! – Galvão Bueno
Você pode não dar muita atenção para futebol, ou detestar o Galvão, mas a frase acima está no sangue de todo brasileiro. “Brasil x Argentina” é um dos grandes clássicos do futebol mundial – para os dois lados, o maior – e muita gente aposta que a partida mais importante da história do confronto (e quem sabe do futebol) está chegando.
A seleção de Messi e companhia é nosso adversário mais frequente. O número total de confrontos passa dos 100. A FIFA reconhece 95 deles, o primeiro em 20/09/1914. São pouco menos de três meses para o centenário do maior clássico do futebol.
Enquanto o aniversário especialíssimo não é completado, o Brasil se classificou em 1º lugar no Grupo A da Copa do Mundo 2014, e a Argentina repetiu o feito no Grupo F. As seleções estão, portanto, em chaves opostas da fase de mata-mata, onde já se classificaram às quartas (a muito custo). Só podem se encontrar na final, no Maracanã, no ano do centenário do confronto. Dá para ter um jogo maior do que esse?
É nesse clima de torcida para ver se o destino reserva à Copa das Copas tal espetáculo, junto à arte de secar a Argentina em cada jogo que resolvemos criar um panorama geral dessa rivalidade.
O INÍCIO
Tradicionalmente, as rivalidades históricas entre países repercutem nos esportes, substituindo os campos de batalhas de outrora pelos estádios e ginásios de todo o mundo. Os dois países vizinhos viviam tensões políticas e militares em 1914, quando aconteceu a primeira partida oficial. Era a estreia do Brasil como seleção principal – antes disso, alguns combinados regionais jogavam em nome do país – contra uma seleção que já atuava desde 1902. Resultado? 3×0 para a Argentina, em Buenos Aires.
Apesar do placar, a tensão não havia alcançado o campo. Uma semana após a primeira partida, depois de banquetes e celebrações, as seleções se enfrentaram novamente, ainda em Buenos Aires, dessa vez valendo a edição inaugural da Copa Roca. Vitória do Brasil por 1×0, com invasão dos torcedores argentinos ao campo… para carregar o goleiro brasileiro Marcos Mendonça nas costas.
Se a rivalidade não chegou ao gramado nas duas primeiras partidas, as seguintes disputas válidas por torneios sul-americanos logo mudariam a situação. Especialmente para o Brasil. É triste lembrar, mas por décadas não fomos os maiores rivais da Argentina, por um motivo simples: perdemos muito mais do que ganhamos.
Nas primeiras 46 partidas, disputadas entre 1914 e 1965, foram 25 vitórias argentinas – incluindo um 6×1, maior goleada da história do confronto -, 8 empates e 13 vitórias brasileiras, com um 6×2 como maior goleada brasileira sobre os argentinos até hoje.
Nesse período, o posto de maior rival da “Albiceleste” (branco e celeste, um tom de azul, cores da bandeira e do uniforme argentinos) era ocupado pela “Celeste” – seleção do Uruguai. São 180 jogos oficiais entre as duas equipes, confronto de seleções mais vezes disputado na história do futebol mundial. Antes mesmo da primeira partida brasileira, nossos vizinhos sul-americanos já haviam se enfrentado 35 vezes.
Brasil e Argentina poderiam até mesmo ser irmãos com um inimigo comum. Foi a Argentina a primeira vice-campeã mundial, em 1930, perdendo para o Uruguai, como ocorreria com a seleção canarinho (que ainda jogava de branco) em 1950.
Nessa primeira fase, em que o Brasil ainda ocupava o papel de terceira força do continente, um episódio se destaca:
BRASILEIROS “MACAQUITOS” – NAS PALAVRAS DE UM URUGUAIO
É comum ver um brasileiro afirmar que o povo argentino é racista, e que isso pode ser visto facilmente em partidas entre clubes argentinos e brasileiros. Alguns eventos atestam essa ideia. Em 2005, o zagueiro argentino Leandro Desábato, em partida do Quilmes contra o São Paulo no Morumbi, teria chamado o brasileiro Grafite de “macaco”, dentre outras ofensas racistas, chegando a ser preso após o jogo.
A história que inicia o folclore em torno do termo “macaquitos” provém de um jogo marcado para 03 de outubro de 1920. Os jogadores brasileiros chegaram à Buenos Aires para a disputa de um amistoso com a Argentina, fato que foi retratado no mesmo dia no jornal Crítica com uma charge:
Na reportagem seguida da charge, aparece o termo “macaquitos”, até hoje forma pela qual os argentinos chamam os brasileiros. Ou é no que nós acreditamos.
Ariel Palacios e Gustavo Chacra, ambos jornalistas brasileiros com histórico ligado a nossos vizinhos, investigaram os detalhes da confusão, e revelaram no livro “Os hermanos e nós”. A charge foi mesmo publicada no jornal Crítica, que circulava em Buenos Aires, porém é obra de um jornalista uruguaio, Antonio Palacio Zino, que atuava como freelancer.
Zino […] deixou claro que não apreciava os brasileiros logo no início de seu artigo no jornal argentino: “Ya están los macaquitos em tierra argentina”. Isto é, “já estão os macaquitos [sic, em um mix de palavra em português, com diminutivo em espanhol] em terra argentina”.
No dia do jogo – e da publicação –, choveu torrencialmente, provocando o adiamento da partida para o dia 25 de outubro. Tempo suficiente para os brasileiros descobrirem a reportagem. Eles teriam ido até a sede do jornal tirar satisfação, e alguns jogadores brasileiros se recusaram a entrar em campo.
O clube Nueva Chicago cedeu jogadores para completar o time, mas a decisão não agradou aos torcedores:
[…] os 5 mil portenhos da plateia no campo do Sportivo ficaram furiosos quando viram que haviam pagado ingressos para ver um jogo internacional, mas que na realidade, no campo, quase metade do time estrangeiro estava composto por nativos argentinos.
A organização definiu, após a confusão, retomar a partida com apenas sete homens de cada lado. Não à toa, essa partida não se encontra entre as 95 reconhecidas pela FIFA no histórico do confronto. Ah, vitória deles, por 3×1…
Os autores contam também que o jornal Crítica homenageou os atletas brasileiros após a partida, dando declarações de solidariedade após a reportagem do jornalista uruguaio. Quanto ao uso posterior de “macaquitos”, o termo só foi encontrado uma vez, no jornal Olé, em 1996. Contudo, ficou com os argentinos a culpa no imaginário brasileiro.
DÉCADA DE 70, OS ANOS DE “GLÓRIA” DO BRASIL COMO MAIOR RIVAL ARGENTINO
A supremacia argentina caiu na década de 70, e junto a esse movimento cresceu o sentimento de rivalidade no futebol por parte dos Hermanos. A seleção brasileira, antiga terceira força do continente, em um período de 12 anos destronou adversários do mundo inteiro, com os títulos mundiais de 58, 62 e 70.
O novo status de maior campeão mundial, o brilho da esquadra de 70, ainda hoje considerada a melhor seleção de todos os tempos, e confrontos importantes em copas do mundo alçaram o Brasil ao posto de seleção a ser batida. Para aumentar a frustração dos argentinos, em 1974, na Alemanha, na primeira partida entre as duas equipes em Copas do Mundo, deu Brasil, por 2×1. A partida iniciou uma sequência de 5 vitórias consecutivas brasileiras – sequência até hoje única no confronto – em meio a outra sequência recorde: 13 jogos sem perder para o adversário, entre 70 e 82. Esse período de invencibilidade brasileira define perfeitamente o tempo em que fomos os maiores rivais da “Albiceleste”.
Outros dois confrontos memoráveis aconteceram nesse intervalo. Na Copa de 78, na Argentina, as seleções se encontravam no mesmo grupo na segunda fase do torneio. O Brasil ganhara do Peru por 3×0, enquanto a Argentina aplicara 2×0 sobre a Polônia. Ambos se enfrentaram em partida tensa, terminanda em 0x0, que viria a ser conhecida como “A Batalha de Rosario”. Esta, no entanto, não estava terminada, com um último jogo a ser disputado por cada equipe, valendo vaga na final. O Brasil derrotou a Polônia por 3×1, deixando os argentinos com a obrigação de ganhar do Peru – melhor defesa do torneio até então – por 4×0. Fizeram 6. Até hoje nos lembramos amargurados do resultado, acusando o Peru de entregar o jogo. A Argentina acabaria conquistando seu primeiro título mundial, em casa.
Na Copa de 82, a memória brasileira logo remonta à decepção da derrota contra a Itália. Antes do golpe sofrido pelo “futebol bonito”, o Brasil enfrentou a Argentina, na mesma segunda fase. A considerada melhor seleção brasileira depois da geração de 70, com Zico, Falcão, Sócrates, entre outros, faria mais uma de suas belíssimas exibições, vencendo a rival com Maradona e campeões de 78 por 3×1.
82, A INGLATERRA ROUBA LUGAR DE MAIOR VILÃO
Não faltaram motivos para a rivalidade entre Brasil e Argentina aumentar. Os movimentos de aproximação política e econômica dos países não se refletiram no campo. Na Copa de 90, a Argentina derrotou o Brasil nas oitavas-de-final por 1×0, em lance de Maradona que terminou em gol de Cannigia.
Derrota dura, mas que ganhou contornos de lenda por conta da água “amistosamente” entregue à Branco em um momento em que a partida estava paralisada. O lateral brasileiro reclamou posteriormente ter se sentido sonolento, ocasionando uma suspeita de que a água fora batizada.
Segundo Maradona, foi mesmo. El Pibe de Oro, como é conhecido, confirmou a história no fim de 2004, no programa de televisão “Mar de Fondo”. A garrafa conteria Rohypnol, poderoso sonífero.
O episódio de 90, a seca de títulos da seleção principal da Argentina que dura desde 1993, e o sucesso brasileiro nesse período seriam ingredientes fortíssimos para uma rivalidade inigualável entre os países. A amarelinha se sagrou campeã mundial em 94, 2002, e ainda impôs duas derrotas duríssimas aos Hermanos.
A primeira foi a final da Copa América de 2004, em que o Brasil empatou o jogo contra a Argentina de Tévez em 2×2, em Buenos Aires, no último minuto, com golaço de Adriano e vitória posterior nos pênaltis.
Um ano depois veio a final da Copa das Confederações, um verdadeiro baile brasileiro com novo decreto de Adriano Imperador. Incontestável 4×1.
Temos que nos contentar, todavia, com o posto de segundo maior rival. Nosso aparente esforço foi em vão, graças à Guerra das Malvinas, em 82. Apesar da pouca duração, à Argentina, derrotada, nada se tornou mais importante do que se vingar da Inglaterra. Ambas se enfrentaram 14 vezes, com supremacia inglesa, mas é da vitória argentina em 86 que o mundo – e o povo argentino – se lembra com gosto.
O antológico 2×1 na semifinal da Copa disputada no México é mais importante para os argentinos do que qualquer partida das mais de 100, contando as não-oficiais, disputadas contra o Brasil. Eles se lembrarão dos dois gols de Maradona no jogo – “La Mano de Díos” e o gol do século – com mais gosto do que qualquer vitória sobre o Brasil.
O sentimento anti-britânico sobrevive na Argentina, ao menos no esporte, como mostra pesquisa feita pelo New York Times para a Copa de 2014, com torcidas de vários países. As perguntas eram: “Quem vai ganhar a Copa?”; “Você torce contra qual seleção?”; “Quem joga o futebol mais bonito?”.
Os brasileiros apostaram no Brasil, e em seguida na Alemanha. Elegeram o futebol da Espanha como o mais bonito – não era permitido votar na própria seleção nessa pergunta, e pelo visto deveríamos ter escolhido a Costa Rica – seguido da Alemanha mais uma vez. Contra quem torcemos contra? Uma dica, está no resto do texto. E o segundo contra quem torcemos, por incrível que pareça… nós, o Brasil.
Já a Argentina elegeu o Brasil como dono do futebol mais bonito, seguido da Espanha; acreditam que eles mesmos ganharão a Copa, e somos nós o segundo palpite; e contra quem torcem contra? Inglaterra. Ocupamos a segunda posição para eles nesse quesito. Como apontado em “Os Hermanos e nós”, o torcedor argentino sonha ser campeão derrotando o Brasil – na semifinal – e acabando com os britânicos na final.
Nosso orgulho com certeza é atacado por essa realidade, mas ainda há esperança. Quem sabe derrotá-los nessa esperada final coloque de volta a maior seleção do mundo no posto de maior rival da Argentina? Neymar, Messi, nossas esperanças de final épica estão em seus pés.
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