quinta-feira, 10 de novembro de 2016
Brasil e Argentina, antes e além da rivalidade
Os múltiplos títulos conquistados a partir da segunda metade dos anos 1950 colocaram em evidência a rivalidade entre Brasil e Argentina, fomentadas pelos três confrontos seguidos em Copa do Mundo (1974, 1978 e 1982, e também oito anos depois, em 1990), além dos frequentes perrengues pela Copa América.Desde então, os vizinhos protagonizam o maior clássico entre seleções do mundo, independentemente do que possa sugerir a oposição eurocentrista. A rivalidade dentro do campo é tão imensa quanto maravilhosa, e faíscas saltam da relva do Monumental de Núñez ou do Maracanã, do Gigante de Arroyito ou do Minerão. Houve uma época distante, no entanto, em que tudo era festa, e qualquer resultado era comemorado por ambas as partes. O tempo antes da rivalidade.
No início do século passado, quando dava seus primeiros passos, o futebol era uma ferramenta para a confraternização entre os povos, praticamente uma quermesse diplomática com bola rolando. Em 1914, no primeiro confronto oficial entre as seleções de Brasil e Argentina, disputado em solo castelhano, depois da vitória brasileira por um placar mínimo, algo que deveria ser decepcionante em uma época de gols em profusão, ocorreu uma cena fantástica e hoje impensável: os torcedores argentinos comemoraram junto, carregando o goleiro brasileiro nos ombros. Foi a primeira edição da Copa Roca, referência ao ex-presidente argentino Julio Roca, incentivador dos jogos entre as duas seleções, que doou a taça para o embate.
Parece foto de padrihos de casamento, mas é a seleção brasileira que viajou
para Buenos Aires em 1920
Festejar independentemente do resultado não era algo incomum naqueles tempos em que se amarrava cachorro com suspensórios. Dois anos antes, o próprio Julio Roca havia chegado ao Brasil para tentar resolver tensões comerciais e militares entre os países. A história é relatada no livro Os hermanos e nós, de Ariel Palacios e Guga Chacra. Pois a chegada de Roca coincidiu justamente com o aniversário de 90 anos da independência do Brasil, que seria celebrada, entre outros convescotes oficiais, por uma série de amistosos entre combinados dos países. A lição desde sempre foi clara, entende quem quer: a diversão não tem pátria.
Os castelhanos bateram com facilidade combinados de São Paulo e Rio de Janeiro e, como tudo era festa, foram celebrados pelos torcedores brasileiros. Mas haveria um terceiro jogo, contra o selecionado nacional, novamente em clima de fraternidade, com o público agitando bandeiras brasileiras e argentinas ao mesmo. Bandeiras que foram sumindo enquanto a torcida murchava conforme os visitantes enfileiravam gols. O primeiro tempo acabou 3 a 0, o que fez Roca conversar com seus compatriotas no intervalo, implorando para que dessem uma maneirada, afinal nosso país comemorava sua principal data nacional. Mas, aparentemente, os jogadores argentinos não estavam preocupados em manter a estabilidade política continental e pisaram tanto no freio quanto a Alemanha em 2014: o placar final acabou 5 a 0 para os visitantes.
Ao longo dos anos, com o futebol sendo levado mais a sério, não necessariamente no sentido mais nobre, e os confrontos tornando-se mais frequentes, do riso fez-se o pranto, o Rio da Prata virou sertão e as tensões dentro do campo aumentaram, até que Brasil e Argentina passaram a atrair holofotes de todo o mundo e hoje carregam consigo um extenso currículo de gritedo e correria em seus enfrentamentos.
Antes da linha de cal, era a fronteira
Como vizinhos, Brasil e Argentina sempre tiveram relações íntimas, para o bem e para o mal, antes mesmo de serem países de fato. Desde a colonização portuguesa e espanhola. Como na Guerra da Cisplatina (1825-1828), quando o Brasil ainda império e as Províncias Unidas do Rio da Prata (como a Argentina se chamava) travaram um QUIPROCÓ bélico dos mais medonhos para tentar conquistar a Província da Cisplatina, território que se tornaria nada menos do que este pequeno e encantador país que hoje conhecemos como Uruguai, para onde todos, pelo menos uma vez na vida, pensamos em nos mudar. Aliás, o Uruguai foi o principal rival futebolístico da Argentina nos primeiros anos do século, também pelas conquistas charruas, inclusive sobre os argentinos, mas especialmente pela proximidade, e até hoje o Rio da Prata entre em ebulição quando voltam a se enfrentar em qualquer margem do charco. Metade da teoria evolucionista do futebol deveria ser dedicada a Uruguai x Argentina.
(A vida em azul, celeste, e amarelo; óleo sobre tela, 1982. Detalhe para
as camisas, de uma perfeição irretocável)
A rivalidade entre Brasil e Argentina já era imensa, mas nos últimos anos foi impulsionada entre os LUSÓFONOS da América do Sul, no caso nós, por meio de um discurso monotemático, raso e preconceituoso, adotado especialmente no meio futebolístico, que resume o futebol argentino à “catimba”, e de alguma forma coloca em dúvida o próprio caráter dos argentinos. É um dos fatores responsáveis pelo acirramento de ânimos, que em alguns corações tacanhos beira a xenofobia, adotado para se referir aos argentinos porque são nossos maiores rivais, mas aplicável também a outros países do continente, dependendo da nossa necessidade. É claro que existem exemplos de hostilidade provenientes do outro lado da fronteira, mas, na média, para os argentinos enfrentar o Brasil significa apenas viver um grande clássico contra uma potência que admiram – e de quem, claro, querem ganhar de qualquer jeito. É o maior dos jogos, mas apenas isso, uma rusga que se decide dentro do campo, com a qual se divertem, sofrem, às vezes ganham, outras perdem. E a vida segue, entre choripans, cumbia e fernet.
Durante a Copa do Mundo, vários argentinos se surpreenderam com a hostilidade dos brasileiros. Porque, fora dos gramados, muitos consideram o Brasil o expoente maior da vida que gostariam de levar – no imaginário coletivo deles, o país vizinho é sinônimo de leveza, praia e caipirinha. O Rio de Janeiro é idealizado como uma espécie de terra prometida do bem viver, e para os nascidos em Buenos Aires a maior injustiça cometida pela PANGEIA é que a zona sul fluminense não esteja colada à Avenida do Libertador.
O troço encrespa de verdade não é contra o Brasil, mas sim contra a Inglaterra. Porque aí a questão não é apenas esportiva, não se resume a Pelé versus Maradona, mas é também histórica e geopolítica, animosidade pulsante desde a Guerra das Malvinas, que sobre o gramado teve seu episódio mais visceral quando Maradona promoveu aquele tango de um homem só para cima dos britânicos, em 1986. Para exemplicar: antes da Copa do Mundo, por exemplo, uma pesquisa do jornal New York Times mostrava os times mais “secados” da competição. A seleção argentina era um dos três times que contava com maior torcida contra, e o Brasil liderava o ranking dos secadores, com 34%. A mesma pesquisa apontava que, entre os argentinos, 13% secavam o Brasil. A primeira posição, claro, era ocupada pelos ingleses, com 19%. Não que os argentinos se sentariam em frente à TV vestidos de amarelo e tentando tirar algum som compreensível do pandeiro, mas a rivalidade com os ingleses supera qualquer discussão de portão com os vizinhos do Brasil.
por Douglas Ceconello
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