terça-feira, 25 de abril de 2017

Os desafios do futebol na Índia: liga independente estelar x liga oficial estagnada



Atlético de Kolkata recebe prêmio como campeão de Nita Ambani (centro) (Foto: divulgação)

*Por Leonardo Máximo
Um bilhão e 400 milhões de habitantes; 438 línguas em uso; 3,8 milhões de quilômetros quadrados; 7,6% de crescimento do PIB em 2016; 70% de população vivendo em áreas rurais; 1% de população pagando imposto de renda; 452 habitantes por quilômetro quadrado; 2,3 trilhões de dólares de PIB em 2016. Impressionou-se? Não é para menos. Não há uma única métrica acerca da India que não cause espanto, admiração, ou, no mínimo, curiosidade.
O país, cuja independência em relação ao colonizador Reino Unido só se deu 1947, é a terceira economia mais relevante da Ásia (perdendo apenas para China e Japão), e já ultrapassou o gigante China no parâmetro de crescimento do PIB. Trata-se, hoje, da economia de escala que mais cresce no planeta, e é lar de titãs globais como Tata Industries, Reliance Company e IOC – atores de peso em ramos que variam da hotelaria à metalurgia, passando por petróleo, automobilística e tecnologia.
E como o mais pulsante dos BRICS lida com o esporte? De maneira bastante peculiar, como lhe é de costume. A paixão nacional – que beira a religião, tamanho o nível de fanatismo local – é o críquete, herança da colonização britânica. As estrelas desta modalidade têm tratamento real no país, que para quando partidas relevantes ocorrem. Sua celebridade mais candente no momento é Virat Kohli, que, aos 27 anos, já amealha uma fortuna que beira os 80 milhões de dólares, e exibe contratos de patrocínio com Nike, Pepsi e uma miríade de outras empresas que produzem de roupas a telefones celulares.
Kohli foi recentemente eleito pela Forbes como uma das 10 celebridades mais importantes da India, numa lista que geralmente contempla personalidades de Bollywood; e é certamente um dos mais badalados ícones de estilo por ali. Para fora da redoma do críquete (como dito, líder absoluto na atenção do público e nos investimentos), outras modalidades disputam o coração e o bolso da audiência e dos patrocinadores. Dentre eles figuram o kabaddi – releitura de um ancestral esporte de contato asiático cujas regras beiram o absurdo para nossos padrões – e, sim, o futebol.
Neste ponto, vale trazer a lembrança de que, a despeito de todo o crescimento que vem exibindo nos últimos anos, a India é um país fundamentalmente desigual, com um abismo considerável entre a população multimilionária (que beira portentosos 100 milhões de habitantes) e a grande maioria, que vive abaixo da linha de pobreza. As opções de entretenimento em uma nação com tal distribuição de recursos são bastante escassas, limitando-se praticamente ao cinema e ao esporte. Assim, é natural que haja, de fato, um grande interesse por todas as modalidades que ofereçam acesso fácil e transmissão televisiva, como o futebol.
Detecta-se hoje, curiosamente, uma tendência entre os jovens abaixo de 20 anos de preferir o futebol ao incensado críquete. A razão é simples: ao passo que o segundo é um esporte elaborado, que demanda um pouco mais de equipamentos para ser praticado, e cujas partidas podem durar mais de um dia inteiro, o primeiro é ágil, exige praticamente nenhum material para seu exercício e não ultrapassa os costumeiros 90 minutos por partida.
Em um mundo que passa por sua mais grave crise de dispersão e fragmentação da atenção, e em uma (ou várias) geração(ões) que não logra(m) manter o foco em determinada atividade por mais de alguns minutos, o futebol emerge como solução arguta e conveniente de entretenimento e lazer. Ademais, a relação da India com o futebol não é recente. O país teve uma breve era de ouro na modalidade nos anos 50 e início dos 60, conquistando resultados
notáveis e exibindo, por certo período, o título de melhor time de futebol da Ásia.
De fato, chegou a se classificar para a Copa do Mundo de 1950. À época, porém, malgrado a classificação, não compareceu ao evento. A razão alegada pelo governo indiano foi a falta de recursos disponíveis para a viagem, mas a
conversa de bastidores é no sentido de que a alegada escassez recursal derivou, em verdade, da falta de vontade política, e da tradicional preferência pelo críquete, que acaba por consumir as receitas disponíveis.
Na seara organizacional, a entidade indiana que se insere na pirâmide hierárquica da Fifa é a AIFF (All India Football Federation), cuja sede fica em Delhi, capital administrativa do país. Fundada em 1937, a AIFF só veio a integrar os quadros da FIFA em 1948, e permanece atuante desde então, especialmente nos estados de West Bengal, Goa, Kerala, Odisha, e em todo o nordeste da India. A AIFF tem sub divisões em diversas regiões, como a IFA (Indian Football Association), sediada em Calcutá) e a WIFA (West India Football Association), com escritório em Mumbai.
O produto de futebol principal da AIFF é a I-League, liga oficial do país formada em 2006, e que conta com 14 clubes na primeira divisão. Há ainda uma segunda divisão, também com 14 clubes, e critérios técnicos que promovem acesso e descenso de dois clubes de uma para outra por temporada. No campo do futebol feminino, somente em outubro de 2016 começou a estruturar-se a Indian Women’s League, que deverá contar com 8 times e ter sua primeira competição oficial no segundo semestre de 2017.
A despeito de sua tradição e dos recursos governamentais de que dispõe, a AIFF caminha de forma relativamente lenta, e vem se mostrando pouco hábil a captar patrocínios e promover de forma eficaz o futebol na India. A situação se agravou ainda mais quando, em 2013, passou a receber competição dentro do próprio país, advinda de uma iniciativa empresarial que alterou o cenário do esporte local: a criação da Indian Super League (ISL), produto de natureza patentemente empresarial e que tem por trás de sua criação algumas das empresas e pessoas
físicas mais poderosas da Ásia.
A ISL conta com patrocinadores como a Hero (maior fabricante de motocicletas do mundo, e detentora dos naming rights da competição), Reliance Industries (segundo maior grupo empresarial da India) e outros gigantes locais, que investem pesado para tornar o produto atraente e altamente consumível, espelhado nas ligas independentes e rentáveis encontradas na Europa e nos Estados Unidos.
Destaca-se a participação da presidente da organização, Nita Ambani: a mulher mais rica da India, casada com o Chairman e CEO da Reliance Industries, é uma entusiasta apaixonada do esporte em geral e do futebol especificamente. Nita é membro permanente do COI e tem atuação mundial no estímulo à prática de esportes, em uma pioneira iniciativa do tipo, posto que o cenário desportivo asiático assiste a presença predominante de homens.
Maldosamente, comenta-se nos bastidores que a ISL foi criada por um capricho seu, e que, justamente por este motivo, tem natureza frágil: quando ela se cansar do futebol, a ISL se dissolveria. Trata-se, porém, de rumor malicioso que parece ignorar o longo e sólido labor de Nita Ambani, ao longo de muitos anos, no incentivo ao esporte.
Como produto comercial que é, a ISL exibe uma estratégia de marketing agressiva e extremamente bem desenhada. São oito times franqueados, cada um de uma cidade ou região (Delhi, Mumbai, Kerala, Pune, NorthEast, Calcutá,
Chennai e Goa). Cada time tem padrinhos que o representam, todos eles personalidades de relevo em Bollywood ou do universo do críquete. Como exemplo, o time Chennaiyin é endossado pela estrela cinematográfica Abishek Bachchan (uma espécie de Tom Cruise local) e pelo astro de críquete Mahendra Singh – ambos também donos da franquia.
Assim, a ISL toma emprestado o prestígio consolidado destas personalidades e busca transferi-lo para o evento
futebolístico, numa astuta iniciativa de marketing por aproximação. A presença de profissionais estrangeiros é estimulada, sendo permitidos até oito jogadores + 1 marquee player (jogador-estrela, também obrigatoriamente
estrangeiro) por time, além de técnicos, equipe de apoio e demais trabalhadores.
Abriu-se aí, pois, uma excelente oportunidade mercadológica para que nomes brasileiros levassem o conhecimento futebolístico adquirido aqui para o universo indiano. Lúcio, Elano e Roberto Carlos já foram marquee players do Goa FC, Chennayin e Delhi Dynamos, respectivamente – com salários especulados de U$ 1 milhão por três meses de temporada. Roberto Carlos, aliás, foi um caso único: ocupou concomitantemente a posição de técnico E de marquee player do time, situação nunca antes presenciada por ali.
Zico, por sua vez, foi técnico do Goa FC por três temporadas seguidas, com patamares de ganho também em torno de
U$ 1 milhão. Além deles, inúmeros outros tiveram ou têm contratos com times da ISL, a saber: Eli Sabiá, Fábio Neves, Jonattan Luca, Leo Costa, Mailson Alves, Richarlyson, Vinicius, Wellington Lima, André Santos, Reinaldo, Elinton Andrade, Charles…. a lista fica mais longa a cada ano.
A ISL tem uma temporada curta, que vai de outubro a dezembro. Os jogos são realizados todos os dias às 19 ou 20 horas e todos são televisionados. Há planos de expansão do formato da liga já para 2017. Este ano, especificamente, ela deve iniciar-se em novembro, vez que a Copa do Mundo Fifa sub-17 será justamente realizada na Índia durante o mês de outubro.
A previsão, assim, é de que a ISL tenha uma temporada de novembro/2017 a fevereiro/2018. Para 2018, estima-se um período de cinco meses de competição, e para 2019, 7 ou 8 meses. Trabalha-se, atualmente, a ideia da instalação de categorias de base, de forma que o produto estimule também a formação de jovens profissionais e possa
manter-se ao longo do tempo de forma profícua.
Um tema candente e sobremaneira controverso no momento é a ideia de fusão entre a ISL e a AIFF, esta segunda sendo a liga oficialmente afiliada à Fifa. Diversas forças na Índia pugnam para a união entre as organizações, de forma a fortalecer o futebol no país e impulsioná-lo para um plano de maior relevância na Ásia e no mundo.
De fato, por mais relevância que a ISL venha mostrando, a realidade é que nenhum de seus times poderá, enquanto existir a AIFF, competir em torneios oficiais, vez que não há filiação à Fifa. A solução seria, destarte, passar a integrar o quadro oficial da AIFF. Os termos da fusão, todavia, são polêmicos e suscitam inflamadas discussões de ambas as facções.
Há um plano inicial que prevê a junção das entidades de forma que a ISL seria a primeira divisão da nova liga, e a os times da AIFF comporiam uma segunda divisão, com critérios de acesso e descenso. Já na primeira temporada conjunta, os dois melhores times da AIFF migrariam para a divisão originariamente composta pelas equipes da ISL. Obviamente, a AIFF não aceita tal modelo, pois considera que seus membros estão sendo relegados, de plano, a uma categoria inferior.
A discussão segue intensa, permeada por um lado pela noção de que, qualquer que seja o arranjo a que se chegue, diversos atores sairão insatisfeitos; e, por outro, pela certeza de que a fusão entre as ligas é mister para promover mais efetivamente o esporte no país.
Tem-se, enfim, que o futebol na India existe há bastante tempo, mas só recentemente vem alcançando níveis que despertem interesse na população e nos investidores, especialmente em função da necessidade de uma opção de
entretenimento barata e ágil, que atenda aos anseios de uma população carente de diversão. As oportunidades mercadológicas para profissionais estrangeiros são reais e o Brasil certamente tem muito com que contribuir na expansão do produto de futebol naquele país.
*Leonardo Máximo
Advogado, pós graduado em direito de empresa e direito dos contratos, mestre em administração e negócios com foco em marketing para negócios globais pela London Business School and Finance, membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Minas Gerais, membro correspondente da Comissão de Direito Desportivo da OAB São Paulo, coordenador do Curso de Pós-Graduação em Negócios no Esporte e Direito Desportivo do CEDIN; e co-coordenador do Grupo de Estudos em Direito Desportivo da UFMG, atua junto a Câmara de Comércio Brasil Índia na Ásia, e como palestrante na Harvard Extension School, no curso Business of Football.

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