“Não devemos ter a ilusão de que isto é algo que se restringe ao contexto do futebol, seja na violência seja no racismo. Há tantos episódios [na sociedade]... Temos práticas e discursos racistas a propósito de deputadas, da ação da polícia... isto extravasa e muito o campo do futebol. Aqui, ganha, pelo próprio destaque da modalidade, uma visibilidade enorme”, considerou o investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC).
O que aconteceu em Guimarães com o maliano Marega, avançado do FC Porto alvo de insultos racistas por parte dos adeptos do Vitória local no domingo, vem da “interiorização de um sentimento de superioridade civilizacional europeia que é um legado do passado colonial e esclavagista” de Portugal e da Europa, algo que “não é novo”, com o antropólogo a recordar que ouve insultos como estes mais recentes, em que se imita o som de um macaco, nos estádios “desde os anos 1980”.
“O que é novo é Marega ter dito ‘basta’, e isso é que realmente espoletou uma discussão, e por um lado ainda bem que está a acontecer, mas que não é de agora. Se não tivesse saído de campo, certamente iria ter o destaque de outros episódios”, explicou, aludindo a um menor interesse para com casos anteriores.
Pedro Almeida, que escreveu uma tese de doutoramento sobre as questões raciais no futebol português, tendo realizado um trabalho de investigação e entrevistas entre 2012 a 2019 com vários agentes desportivos, distingue o racismo da violência no desporto, de agressões físicas, como no ataque à Academia do Sporting, ao “clima tenso em alguns jogos” e a uma “cultura de ódio instigada no contexto do futebol português”.
“É instigada por vários atores, desde dirigentes a comentadores è a identidade dos clubes, à forma como os adeptos usam o sentimento de identidade feito por oposição aos outros, tendo como caso mais paradigmático o FC Porto-Benfica, aos próprios grupos organizados [as claques], que são só parte da questão... há todo um conjunto de atores, não exclusivos ao contexto do futebol”, acrescentou.
Há na sociedade um racismo “muito mais enraizado do que nós, enquanto portugueses, acreditamos ou queremos acreditar”, defendeu, e o futebol, pela “representatividade que tem junto da cultura popular, ocupa um papel de destaque e catalisa certos sentimentos, práticas e discursos” racistas.
“Nós percebemos que é mais do que um mero espelho da sociedade, é um campo muito rico, no sentido em que não só reflete a sociedade como tem uma capacidade autónoma, isto é, vemos que o gesto do Marega é um ato de resistência empática antirracista e que deve ser celebrada. Constitui um ponto de partida para uma discussão mais alargada”, reforçou.
O futebol, mesmo tendo “um filtro social muito mais ténue” no estádio do que no quotidiano, não é, ainda assim, o campo de onde surgem os comportamentos racistas, mas antes um ‘campo’ onde se ‘joga’ com “uma maior legitimidade para produzir sem filtro, ou menor filtro, discursos abertamente racistas e violentos”.
“Reflete o panorama português, mas também de alguns países da Europa. Há toda uma envolvência política favorável à prática de discursos de intolerância e ódio”, apontou o investigador, que, ainda assim, não vê, neste caso específico, “uma relação de causa e efeito”.
O avançado do FC Porto recusou-se a permanecer em jogo e abandonou o campo, ao minuto 71, após ter sido alvo de insultos racistas por parte dos adeptos do clube vimaranense, numa altura em que os ‘dragões’ venciam por 2-1, resultado com que terminou o encontro da 21.ª jornada da liga.
Vários jogadores de ambas as equipas tentaram demovê-lo, mas Marega, que já alinhou no Vitória e tinha marcado o segundo golo dos ‘azuis e brancos’, mostrou-se irredutível e foi substituído por Manafá, depois de o jogo ter estado interrompido cerca de cinco minutos.
O Ministério Público instaurou um inquérito na sequência deste incidente, que já mereceu a condenação do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do primeiro-ministro, António Costa, entre outros.
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