Minuto 59. Falta longe da área. Werder Bremen no ataque. A torcida gritava e pedia uma cobrança bem feita. Toque rasteiro. Cruzamento curto. A bola sobra. Um homem ganha a frente e chuta, de carrinho. Bola no fundo das redes. Explosão da torcida. Alegria do menino. E um só é entoado: Ousman Manneh. O sorriso, que ia muito além do gol marcado, poderia não ter acontecido se, em 2014, ele não tivesse lutado pela própria vida ao sair da Gâmbia.
Tudo começou com a fuga. A miséria do país o fizera partir rumo à Alemanha. No mesmo ano, começou a jogar futebol em um centro de treinamentos de refugiados, que foi o local que abriu as portas para ele. E para muitos. Olheiros de times pequenos começaram a observar as partidas, e o Blumenthaler, equipe da quinta divisão alemã, gostou do menino.
Apenas 11 jogos foram o suficiente para equipes mais tradicionais verem o potencial do jogador, na época, com 17 anos. Nesses confrontos, Manneh fez 15 gols e o Werder Bremen não pensou duas vezes em contratá-lo.
Na primeira partida pelo time profissional, em 2015, em um amistoso contra o SV Wilhelmshaven, ele fez o impensável. Pelo menos para os torcedores, não para o jovem que acreditava em um futuro melhor na Alemanha. Quatro gols e uma vaga no plantel principal do Werder.
Um refugiado começava a fazer história. Mas as origens disso não começaram com Manneh. Para entender o que o jogador e milhares de pessoas fazem, precisa-se voltar a um período nebuloso. O final da Segunda Guerra Mundial.
As raízes históricas
A Alemanha se encontrava destruída e em colapso. Fome, pobreza e miséria. Cenas de um país que destruiu e foi destruído. O saldo das mortes, na maioria homens, passou dos 8,8 milhões de pessoas. Mulheres, esposas e filhos desamparados, vendo a prosperidade que acontecera após a Primeira Guerra Mundial ser acabada.
Para se reerguer, o país fez acordos com outras nações, como Turquia, Itália, Espanha e Grécia para permitir a vinda de cidadãos estrangeiros à Alemanha. O objetivo era simples e claro, retomar o crescimento. Após a Guerra e o período de destruição, a nação se reergueu. Fundamentada por suas indústrias, o país deu a volta por cima e precisava de mão de obra.
A vinda de imigrantes trouxe para a Alemanha uma nova esperança. Os países vizinhos, com a população que veio de cada um deles, alimentavam os germânicos. Esse foi chamado de ‘milagre econômico’. Só entre 1955 e 1973, vieram mais de 14 milhões de pessoas para o país. Todos trabalhariam temporariamente e depois voltariam para seus países de origem.
Isso acabou não acontecendo. Milhões desses ficaram no país porque se identificaram e criaram raízes na Alemanha. O reflexo direto disso é mostrado hoje. Diversos jogadores de origem turca, polonesa e africana fazem parte da Bundesliga. Somente na Seleção Alemã convocada para a Copa do Mundo, nove jogadores têm origem em outros países.
Özil, Gündongan e Khedira são alguns deles. Vários já foram campeões mundiais com a Seleção em 2014, no Brasil. O crescimento industrial vertiginoso durante as décadas de 1950 e 1960 foi a base para isso acontecer. Os pais e avós dos jogadores renasceram a Alemanha. Transformaram o país destruído em uma nova potência. O futebol é apenas um fruto gerado por isso.
Atualmente, na Alemanha, são quase sete milhões de estrangeiros. 8,5% do total da população (de acordo com o último Censo - 2016 – 82,5 milhões é a população alemã) é formada por pessoas de fora do país. De todos os estrangeiros, 25% são turcos, influenciados por conta da imigração pós-Segunda Guerra Mundial.
Os refugiados na Alemanha
Até por conta do pano de fundo histórico da Alemanha, Angela Merkel, chanceler do país, fez questão de abrir as portas para os refugiados. Milhões de pessoas saíram de seus países de origem por conta das guerras e buscam na Europa um refúgio, um novo lar, uma oportunidade. Muitos países fecharam os portões. Não queriam ter que acomodar pessoas vindas de outros lugares.
A Alemanha fez diferente. Apostou novamente na sua história. Como depois da Segunda Guerra Mundial, permitiu a entrada de refugiados, gerando dúvidas e opiniões divididas. Merkel ajudou os refugiados e, após três anos, eles chegam a quase um milhão no país.
Até 2016, a Alemanha tinha 735 mil refugiados. Do começo de 2017 até abril de 2018, 165 mil novos refugiados chegaram ao país. Muitos vêm por caminhos difíceis, complicados e dolorosos. Atravessar o Mar Mediterrâneo em balsas ou pequenos barcos superlotados, em que o naufrágio é quase uma certeza, não impedem as pessoas de buscarem novos lugares. O perigo constante da Guerra nos seus países, não criam dúvidas, só a vontade de sair logo.
Dos 900 mil refugiados do país, a maioria veio da Síria, que enfrenta uma Guerra Civil desde 2011, em que há tentativa da retirada do ditador Bashar Al-Assad do poder. Milhares de pessoas já morreram. Do Afeganistão, 132 mil pessoas foram para o território germânico. Do Iraque, 105 mil. Só esses três países representam 62% dos refugiados na Alemanha.
Manneh e Akolo, os exemplos
Depois de chegar ao time principal do Werder Bremen, Manneh começou a conquistar seu espaço, mas com dificuldades. Não jogou nenhum jogo na Bundesliga, somente em amistosos. No entanto, foi figura ativa do time B. Como é comum na Alemanha, equipes reservas dos principais times do país, disputam a terceira ou quarta divisões do campeonato nacional.
Na terceira divisão, Manneh fez 28 jogos e três gols. No ano seguinte, mais experiente, foram nove jogos pelo time B e quatro gols. O melhor momento veio quando foi chamado ao time principal. Foram seis jogos no total e o gol histórico da vitória contra o Bayer Leverkusen.
Na atual temporada, Manneh só jogou pelo time B. Foram oito jogos e cinco gols. Para quem saiu em busca da sobrevivência, estar saudável e em um time de futebol da Alemanha, já é uma vitória incrível. O sorriso do gambiano é de felicidade.
Gerd Wenzel, alemão e comentarista da ESPN Brasil, comentou a importância dos refugiados no país: 'Esses refugiados têm apenas a agregar à vida multicultural na Alemanha. Temos exemplos até na própria Bundesliga, onde há jogadores refugiados que já se integraram no futebol alemão, como é o caso do Akolo, do Stuttgart. De refugiado, de repente passou a ser um profissional muito bem visto no futebol alemão'.
Chadrac Akolo é outro vencedor. O congolês nasceu em 1º de abril de 1995, na extinta Zâmbia, hoje República Democrática do Congo. Aos 14 anos de idade, ele fugiu do país por conta da revolta sócio-política na região e atravessou o Mar Mediterrâneo, rumo à Suíça. Por lá, chamou atenção do Sion e começou a jogar futebol. Pelo clube, fez 18 gols em 58 partidas disputadas.
O sucesso lhe rendeu frutos. Foi contratado pelo Stuttgart e, finalmente chegou à Alemanha. Em sua primeira temporada, fez 4 gols em 10 jogos, e se tornou xodó da torcida. Sua meta nunca foi ser jogador de futebol; ele apenas buscou fugir do terror e sobreviver.
Incentivo aos refugiados pela Bundesliga
Seguindo a cultura do próprio país, a Bundesliga faz diversas campanhas de apoio e de ajuda na inserção dos refugiados na sociedade alemã e no futebol. Aliado a campanhas oficiais, cada time usa seus artifícios para trazer e fazer com que os refugiados participem dos jogos e dos momentos com os clubes. O Borussia Dortmund, por exemplo, fez diversos treinamentos somente com refugiados.
Além disso, trouxe 220 deles para assistirem, in loco, o jogo do Dortmund. As torcidas também embelezaram as arquibancadas com faixas e placas de apoio. “Bem-vindos, refugiados”, “Bem-vindos ao futebol”, entre outras escritas foram muito vistas durante a temporada 2015-16, momento de maior impacto e de rejeição de outros países em relação aos refugiados.
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