por Felipe Lobo
Um país que tem milhões de crianças jogando futebol, clubes com dinheiro, estrutura e boa condição social. Tudo isso poderia ser motivo para que os Estados Unidos formassem muitos jogadores de futebol, mas não é. E as razões para entender o problema de formação de jogadores nos Estados Unidos é mais complexo do que simplesmente dizer que americanos não se interessam por futebol. Por isso, conversamos com Thales Peterson, treinador e um dos coordenadores do FC Golden State, um clube formador na Califórnia, que tenta emplacar jogadores no futebol profissional do país.
Thales nos passou um panorama de como está a formação de jogadores no país, o choque cultural entre o que se pensa de futebol na América do Sul e nos Estados Unidos, além de uma diferença social enorme. Veja abaixo o que Thales contou com exclusividade à Trivela.
Ida aos Estados Unidos
Sempre quis ir para os Estados Unidos. Trabalhava em uma empresa que fazia soccer camps e meu chefe veio ao Nova México. Uma mulher gostou do nosso trabalho e perguntou se teria alguém para ir. Eu fui e fiquei no Novo México por um ano, mais ou menos. Mudei para Miami, trabalhei por lá, junto com a Traffic. Depois de alguns anos, fundamos a Golden State. Eu encontrei o meu sócio, que tinha a ideia e dois filhos que queriam jogar. Ele não gostava da metodologia dos clubes próximos. Queria uma filosofia diferente, que não focasse só em ganhar.
Fomentar o gosto pelo futebol
Uma coisa que valorizamos é amar o futebol. Não é só jogar, assistir, ver a Champions League. Hoje temos mais de 20 brasileiros no time. Temos estrutura semiprofissional. Fizemos parcerias com alguns clubes. Um dos objetivos é focar no jogador. Colocamos alguns meninos novos para categoria acima. Tem muitos meninos que têm bom nível.
Em busca de uma entrada na universidade
No nosso universo, todo mundo quer ser jogador profissional. Não precisamos incentivar a se esforçar. Aqui, o objetivo não é esse muitas vezes. Muitas vezes o objetivo é entrar na universidade. Muitos pais me procuram para dizer isso, que o futebol será um passaporte para entrar na faculdade.
Muitas vezes, se formando em uma universidade grande, ele consegue ganhar mais do que como jogador de futebol. Para eles, se formar e ganhar um bom salário é o objetivo. Na nossa cultura, no Brasil, você só se formar e trabalhar, você não vai enriquecer nunca. Nos Estados Unidos não.
Isso pouco a pouco está mudando. De cinco anos para cá, isso mudou muito. Os times da MLS estão investindo isso. Muitos dos times estão contratando jogadores de 15, 16 ou 17 anos para já amarrar o jogador e não ter perigo de perder. Muitas vezes os próprios clubes formam os jogadores e eles acabam ingressando na universidade.
Isso está mudando porque o dinheiro está mudando também. Nosso jogador foi contratado pelo Atlanta United 2, da USL. Não é um contrato que ele nunca mais vai precisar trabalhar, mas dá mais tranquilidade. Em breve teremos dois caminhos. Um para quem quer ser jogador profissional será uma, quem quer ser atleta universitário será outra. A temporada universitária é praticamente de três meses, o resto fica basicamente fazendo academia. Não vai chegar no nível profissional nunca.
Problema cultural na formação de jogadores
Tem alguns empecilhos [para formar jogadores]. Em geral, treinam duas vezes por semana, uma hora e meia por dia, praticamente três horas por dia. Dependendo do nível da criança, no resto do tempo ela nem lembra que futebol existe. Ela não vive o futebol.
A cultura latina é um pouco diferente, os latinos assistem o campeonato mexicano, quando tem jogo do América e Chivas todo mundo sabe. Treinar é bom, mas não é suficiente. O nível dos treinadores também não é suficiente. Os técnicos de futebol trabalham nisso só meio período, não são dedicados a isso, não são profissionais. Podem até ser apaixonados, mas não é alguém estudado, com curso de educação física, curso de técnico.
Tem um problema: os cursos da federação são caríssimos. E mesmo formados, é difícil conseguir colocação. Os cursos precisavam ser mais acessíveis para capacitar mais treinador e desenvolver mais jogadores que cheguem em nível profissional. Ter milhões e milhões de crianças jogando é bom, mas quantos chegam a jogar no alto nível?
Quando o moleque entra na High School [equivalente ao Ensino Médio no Brasil], o que é mais popular? Basquete, futebol americano, beisebol. Não são esportes que exigem que você tenha jogado desde pequeno. Um menino rápido consegue jogar futebol americano fácil.
Todo mundo assiste NFL, playoffs, Super Bowl. Mas não assistem futebol. Como o Real Madrid joga? Como o Manchester City joga? Como eu saio de uma determinada situação? Se não tiver um treinador que passe essa ideia, ela joga, mas não se desenvolve até chegar no nível profissional.
Escolinha e categorias de base
As academias, como o Golden Stade, são como as categorias de base no Brasil. A gente joga contra as categorias de base dos clubes da MLS e com outros clubes como o próprio Golden State. Para jogar esses campeonatos, não é qualquer clube que consegue. Precisa ter treinadores, formação de jogadores, tirar uma licença.
Por não terem tantos clubes da MLS, é preciso outros clubes que tenham o mesmo nível, para jogar contra. A parte da academia, categorias de base, os meninos não pagam. Os meninos não pagam uniforme, viagem, nada, tudo patrocinado.
A parte do clube, é a parte que seria a escolinha. Você chega lá, se o seu time tem 10 ou 11 anos, temos vários times de vários níveis, você paga, como uma escolinha. Os meninos que se destacam mais na parte do clube, que funciona como escolinha, são convidados para um teste para a academia. Então funciona.
Credenciamento para se tornar clube formador
É um processo longo e difícil para ser aceito. A parte da academia cresceu tanto que temos do sub-12 ao sub-19. Tem vários clubes que pela história só tem categorias como o sub-12, por exemplo. São apenas 56 clubes no país todo que fazem parte do sub-12 ao sub-19. Nós somos um deles. Por termos um desenvolvimento grande, um grande número de jogadores que chegaram ao profissional, já ganhamos campeonatos regionais, estaduais e nacionais, o clube precisa ter um currículo bom para ser aceito como uma academia.
A Academia é parte da US Soccer [a federação de futebol dos Estados Unidos]. O objetivo é formar jogadores para que façam parte da seleção americana. Há várias regras. Os meninos precisam jogar, os jogadores não podem ficar só esquentando banco. Há vários olheiros que avaliam como seu time está jogando, que estilo de jogo, como é o entendimento tático. Baseado nisso, eles fazem uma avaliação. Fazemos também uma autoavaliação todo ano. É um processo com uma avaliação constante. Alguns clubes não conseguiram manter o nível, um parâmetro elevado e acabaram saindo.
É um processo que a federação americana está ajudando, dando ferramentas para os clubes e os meninos melhorarem. Na minha concepção, ainda falta uma licença de treinador mais acessível a todos. Mais regionalizada no começo, mais em conta.
Atletas de porte físico x habilidade técnica
Parte da academia, temos dois eventos por anos, que chama showcase, que jogamos contra times de outra conferência. Todos os clubes jogam no mesmo complexo e no mesmo período. Todo mundo que faz parte da academia está lá. Times do Arizona, Nova York, Chicago, todo mundo está lá. Funciona bem como um networking. Tem uma reunião também com a federação que apresenta números e tudo.
Temos nossos próprios contatos aqui, com parceiros, com agentes, que acabamos desenvolvendo relações. Uma das coisas que ainda é um choque é a visão do americano com o futebol. Eu gosto de jogador pequeno, rápido, habilidoso. O americano, em geral, pela cultura dos outros esportes, basquete, futebol americano, eles gostam de um jogador forte, rápido, brigador. A nossa cultura de posse de bola, criatividade, imprevisibilidade, não é algo que o americano gosta muito.
O futebol universitário, dificilmente você encontra um jogador de 1,75 metro, rápido, habilidoso. Em geral são jogadores grandes, mais de 1,80, fortes, altos, bons de cabeça. Isso é algo que tem que mudar. O futebol universitário, na minha visão, mata o profissional. Há número ilimitado de substituições. Você pode começar com 11, aos 25 minutos mudar todo mundo, pressionar o time lá em cima o tempo todo. Não é o futebol que estamos acostumados.
Por isso também acho que o americano ainda não conseguiu produzir jogadores em nível alto. O que conseguiu foi o Pulisic, que foi se formar na Alemanha como jogador. O meu jogador tem que ser técnico. A parte física é importante, mas não adianta ter só isso.
Jogadores que não possuem fundamentos
É um problema bem sério. Temos meninos que pagam à parte treinador para trabalhar fundamental. Tipo um personal trainer de fundamentos. Mas trabalhar fundamentos em uma situação isolada, você fica uma hora trabalhando com a bola, fica olhando para baixo, você não vai pensar e nem nada, vai mecanizar aquele ato. Como transferir isso para o jogador? Você pode ter um passe perfeito, mas como transferir isso para o jogo? Como é a tomada de decisão, quando passar a bola, que tipo de passe fazer?
Acho que é um problema que é americano, mas é mundial. As crianças não brincam mais de futebol. Não tem no Brasil, aqui muito menos. A não ser que você vá em uma vizinhança latina, você não encontra nada disso. Você vê com a luva de beisebol, bola de futebol americano, bola de basquete. O futebol até tem, mas é mais organizado, ou tem que pagar para jogar… Não é algo que você junto os seus amigos para jogar. Isso faz com que não se desenvolva mesmo.
Essa parte é da academia, a gente treina. Treinamos quatro vezes por semana por aqui. Queria até mais, mas por falta de campos, não conseguimos. Por exemplo, o lance que o Neymar domina a bola nas costas, depois passa. Se você não assiste aquilo, até para ter ideia de tentar aquilo você não tem. Jogar só no Xbox não melhora.
Problemas da MLS
Sim, acho que a TV [o contrato de TV da MLS é significativamente mais baixo que NHL, MLB e principalmente NBA e NFL] é um ponto bem válido. Outra coisa é melhorar o nível da competição. Só ter a MLS, ou a Concacaf Champions League, você precisa melhorar o nível dos times. Melhorar para que os times da MLS consigam competir com os times do México. Aqui, há jogadores de nome, mas se fala que é uma liga para aposentar.
O motivo da TV sim [é uma barreira], mas a liga também precisa ser mais nova em média de idade. É preciso ter meninos de 16, 17, 18 anos sendo titulares, ou ao menos tendo chance, mostrando o que sabem. Para que eles fiquem no país. Porque hoje tem um êxodo de americanos indo jogar na Europa, aqueles que têm um nível melhor. Eles vão jogar na Itália, na Alemanha… Aqui tem muito imigrante, com passaporte europeu, e aí vai jogar por lá.
Um dos principais motivos é a não autonomia dos clubes. Por exemplo: você tem um jogador que é uma joia na categoria de base. Vai fazer um contrato, vai ser vendido para o Real Madrid. Ele pertence à liga, não ao clube. Isso é um problema. O clube precisa ganhar dinheiro com jogador para poder investir na base e formar de novo. Agora, quando você não tem o retorno, investe em jogadores, estrutura, técnicos, viagens, o menino vai embora. Há times do México que vem, buscam os jogadores e levam de graça.
Teto salarial atrapalha ou ajuda?
Com certeza é um problema. Você pode pagar muito para poucos, mas para muitos você paga pouco. E essa é a diferença. Por exemplo, se o menino se forma em uma universidade grande, ele vai ganhar uns 15 ou 20 mil por mês, algo que ele não ganhará sendo jogador de futebol.
Na NFL, ou NBA ou na MLB, eles ganham contratos milionários ainda no começo da universidade. Se os valores forem maiores, você vai atrair para se tornarem jogadores de futebol, ao invés de se tornarem profissionais de outras áreas. Vai ter casos que querem estudar, obviamente, é parte da cultura americana. Mas o que dá para mudar é pegar os que querem serem jogadores e investir neles.
Tem qualidade aqui nos Estados Unidos, e muita. Eu tenho no meu time sub-19 no mínimo quatro meninos que poderiam ser profissionais. Eles não têm a cultura que eles estão treinando com os profissionais do lado, que ele vê o cara chegar com um carrão, vê o time profissional. Ele vive na realidade dele, não vive sonhando em ser como o profissional. A cultura dele é ir para a faculdade…
Hoje o mercado está muito mais maduro. Há ainda uma grande distante da MLS com as ligas inferiores. O Atlanta United, por exemplo, construiu um estádio enorme, milhões. Eles não vão construir um estádio sem saber que tem retorno. Eles sabem fazer o marketing, ir a um jogo nos Estados Unidos é uma grande experiência. Você assiste ao jogo tranquilo, não tem fila. É um evento, muito legal. Os clubes têm autonomia, sabem fazer. Falta a liga e os clubes trabalharem juntos para que os clubes tenham direito aos jogadores.
O teto salarial é uma questão também. Deixa o clube pagar o quanto quiser. O Atlanta comprou um jogador argentino, o LA FC contratou um uruguaio… A mentalidade dos dirigentes que estão tomando o poder agora é muito diferente dos que vieram antes. São caras que jogaram não só nos Estados Unidos, mas também fora. Isso é uma coisa muito boa para o futebol.
O novo presidente da federação também será importante. Que não pense só no negócio, que produza mais [Carlos Cordeiro foi eleito presidente da US Soccer, depois de servir como vice-presidente da gestão anterior].
“Futebol universitário atrapalha”
Uma das coisas que se precisa fazer é aliar o futebol universitário com o futebol profissional. Aqui os meninos têm medo de jogar futebol profissional. Aqui, quando joga no futebol profissional, você perde a elegibilidade para o futebol universidade. Talvez criar uma idade, até 23 anos, por exemplo, que ele continue sendo elegível.
Dar uma autonomia maior para os clubes, que eles cuidam mais dos jogadores, dar chances aos jogadores mais novos. Seleções americanas de base sempre vão bem. O maior problema é dos 17 aos 23, que é a idade que os meninos vão para a Universidade. O nível desce muito. Você joga três meses e faz festa em nove meses. Teria que ser o contrário, treinar muito mais, jogar muito mais.
Esse é um ponto que o presidente da federação poderia mudar.
“Americano precisa jogar na Europa”
Por eu ser estrangeiro, eu vejo futebol de uma maneira muito diferente do americano. De uma maneira geral, eles são arrogantes, que tudo deles é melhor. Tanto que a liga deles têm regras que não existem em outros lugares. Eles usam o sistema de medidas deles que não é o sistema métrico. Futebol universitário tem regras que não existem no futebol profissional.
Os sul-americanos às vezes têm problemas aqui, pelo modo como vemos futebol. Na federação em si, eu acho mais difícil. Veja, quando o Klinsmann veio e tentou mudar, e ele falou que os americanos tinham que sair para jogar na Europa, isso foi muito malvisto. Mas essa arrogância foi o que levou o país a não se classificar para uma Copa. O que eles fazem está melhorando o futebol? Está. É suficiente para competir com o que se faz no Brasil, ou na Argentina? Não.
Técnicos estrangeiros
Hoje quem cuida de licenças de treinadores é holandês. Isso também pode mudar com o próximo presidente, ser mais aberto a outras culturas. Antes era só a cultura inglesa, era tudo da Inglaterra. Hoje, são os holandeses. Dois dos empecilhos são a língua, que muitas vezes o técnico tem uma boa ideia, mas não domina o idioma e não consegue transmitir; e outra é a questão do visto. Com o Trump no poder, ele dificultou muito a tirada de visto para todo mundo. A gente até gostaria de trazer mais gente, mas não conseguimos tirar o visto, está cada vez mais difícil.
Com certeza trazer treinadores estrangeiros ajudaria, fazer clínicas para treinadores, ajudaria e melhoraria muito. Mas depende da cultura do clube, da cultura de quem está no poder, de quão aberto estará o clube, a federação, outras culturas. Tem gerações também. Uma das dificuldades de trabalhar nos Estados Unidos é que eles acham que o jeito que eles fazem é o melhor jeito. Existe uma arrogância no jeito de pensar e agir. Se eles estiverem mais abertos, certamente melhor.
Ter ou não ter acesso e rebaixamento?
Depende de quem entrar no poder. Eles precisam encontrar um jeito de balancear. Rebaixamento é um dos pontos primordiais para melhorar. O cara treina ali, está em último lugar, ele não está se esforçando, ele sabe que no ano seguinte ele tem outra chance. Funciona em outros esportes, sim, mas no futebol não.
É fundamental ter promoção e rebaixamento. Para ter um jogador que cause impacto fora, na Europa ou América do Sul, ele precisa dar a vida. Ele precisa saber que o rebaixamento muda a vida dele, do clube. Os dirigentes, a federação, a liga, os clubes precisam pensar nisso. Se não, você sempre sabe que ficará a mesma coisa. É preciso mudar.
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