quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Carta de um gremista para um jovem colorado



Texto de Maurício Brum

Meu querido rival,

eu entendo exatamente como você está se sentindo. Não da tua vida, é claro que não. Afinal de contas, com você é diferente. Ainda mais nesta idade. Na adolescência, ninguém nunca entende o que estamos sentindo, nem nós mesmos, e o mundo já é diferente demais do que aquele em que nossos pais viveram para os conselhos deles parecerem válidos – ainda que, muito mais tarde, acabemos descobrindo que os conselhos eram, sim, apropriados para aqueles momentos. Mas, se não entendo dos problemas da tua vida, te garanto: compreendo tua frustração enquanto torcedor.

Doze, treze anos atrás, eu era exatamente como você: um jovem torcedor com doze, treze anos de idade. Talvez nós dois tenhamos escolhido o time por razões parecidas. Quando eu era criança, o Grêmio ganhava tudo. Quando você nasceu, o Inter estava tomando o posto de grande copeiro do Rio Grande do Sul. Sem uma pressão familiar para ir para o outro lado, quem é que vai escolher o clube que perde sempre? Eu não. Nem você. Mas a rivalidade Grenal é um pouco como um mercado de ações: um eterno sobe e desce. Você, como eu, resolveu investir em quem estava em alta. E é claro que ninguém permanece no topo para sempre, mas não nos avisaram disso na época.


(Ricardo Duarte / Inter Divulgação)

No meu caso, a gangorra começou a virar justamente quando eu passei a acompanhar futebol mais de perto. Como você, eu era alguém que havia passado a infância colhendo as glórias de torcer para um clube multicampeão, mas, na real, nunca tinha vivido aqueles títulos plenamente. Quando o Grêmio venceu a Copa do Brasil em 2001, nosso último grande título, eu tinha nove anos de idade. Provavelmente, você estava com uma idade parecida quando o Inter ganhou o seu último caneco importante, a Libertadores de 2010. Nós dois vivenciamos aqueles títulos muito mais de perto do que as conquistas anteriores, mas, vamos ser honestos: o que diabos a gente lembra dos nove anos de idade? Nós dois recordamos a final, é claro que sim, e talvez de algum jogo importante no meio do caminho – os 4x3 que Marcelinho Paraíba liderou sobre o São Paulo em pleno Morumbi, ou o gol de Giuliano na fumaceira de La Plata. Mas eu não lembro nada da semifinal contra o Coritiba, e talvez você já tenha esquecido do duelo contra o Banfield nas oitavas.

A minha memória mais clara começa um pouco mais tarde. Eu consigo lembrar em detalhes aquilo que aconteceu a partir de 2003, quando eu estava por fazer doze anos. Na tua linha do tempo pessoal, isso deve ser ali por 2012 ou 2013. O Inter já não era tão bom assim, não é verdade? Estaduais ainda eram possíveis, e uma campanha decente na Libertadores não era fora da realidade (o próprio Grêmio de 2003 chegou às quartas-de-final e só não foi além porque levou um gol no último lance), mas as grandes conquistas começavam a ficar um pouco mais difíceis do que nos tempos anteriores. A gente começa a olhar as tabelas dos títulos recentes, mas já tão antigos na memória, e se pergunta como antes era tão fácil patrolar um Palmeiras ou um São Paulo, mas agora a gente leva 5 em Chapecó, 4 em Goiânia, ou algum outro resultado impensável até bem pouco tempo atrás.

A gente percebe que a coisa não é mais tão boa. Mas o rival ainda não ganha nada. E os torcedores um pouco mais velhos estão ali para contar sobre os títulos que não lembramos direito. O que para nós é apenas uma memória embaçada, para eles foi o ápice da vida como torcedores. Eles certamente lembram até da forma como o Clemer pulou para defender determinado chute aos quarenta e quatro do segundo tempo de algum jogo não tão importante assim em Campinas. Tu, por outro lado, lamentas que seja preciso recorrer ao youtube para tentar fabricar uma emoção a respeito do gol de Gabiru. Assim como eu ia atrás de vídeos do pênalti de Dinho, tu ouviste todas as narrações possíveis, até em árabe, sobre a façanha de Yokohama: aquilo também era a tua história. O Grêmio de Felipão nos anos 90 também era a minha. Mesmo que não lembrássemos muito.

Só que, diante de ti, agora, está um clube diferente do que os vídeos e os torcedores mais velhos te contam. O Grêmio de 2003, que não chegou a cair (salvou-se na última rodada, adiando o rebaixamento para 2004), era muito parecido com o Inter de 2016. Nós também tínhamos uma direção perdida, um passado recente cheio de conquistas gigantescas, e um time que parecia melhor do que a briga para não cair. O Grêmio de 2003, você não deve saber, ainda tinha Danrlei e Anderson Lima; o teu amado Tinga; ainda tinha o selecionável Gilberto; e tinha um Jesus Christian que seguia destruindo adversários. Não era um time ruim a ponto de ficar na rabeira da classificação. Mas tudo, tudo, tudo parecia dar errado. Com o Inter de 2016, é a mesma coisa. Há bons valores. E nada funciona. São pênaltis perdidos, erros de arbitragem que parecem ser sempre contra, gols sofridos no último minuto e longas sequências sem ganhar.

Você ouve que “time grande não cai” e que o Inter é “campeão de tudo”. Eu ouvia que “somos o único clube internacional do estado” e que o Inter “nunca ganhou de ninguém”. No meu tempo não havia Whats nem Insta, e o Facebook não era popular. Usávamos o tal de Orkut (pergunta pro teu irmão mais velho) e, nos vários fóruns que havia por lá, os gremistas eram bem ativos em comunidades como “Libertadores – eu tenho” ou “Meu clube tem passaporte”. Afogávamos as mágoas de um presente terrível lembrando de um passado glorioso que também servia para zoar o rival. Hoje, tu vês até jogadores dançando valsas sobre os nossos 15 anos sem títulos e dirigentes com 90% de chance de fazer o Inter passar pela maior vergonha da sua história insistindo que time grande não cai.

No fundo, você sente, como eu sentia ao ouvir sobre como o Grêmio era muito mais campeão que o Inter, que esses discursos já perderam o sentido. Que a realidade é outra. Mas eles não entendem isso. Eles insistem em achar que o tempo deles persiste até hoje. Em 2003, nós nos salvamos. Mas foi apenas para tornar o sofrimento mais longo: 2004 foi ainda pior, e finalmente caímos. Foi preciso passar pela Série B para aprender uma dura lição, uma que minha geração carrega no fundo do peito e da consciência até hoje: a arrogância de quem veio antes ajudou a nos enterrar.




















(Foto: Ducker.com.br)

O gremista que viveu de fato os anos 90 acreditava ter diante de si um clube imbatível, o maior copeiro do país, o único time com raça de verdade – o Imortal. Até que nada disso mais era verdade. Aprendemos que não existe um estilo de jogo intrínseco a um clube: existem times, e times passam. Os gremistas da minha idade, geralmente, são muito mais austeros do que os que vieram antes. Encaramos o futebol com um certo ceticismo. Nossa infância foi vivida com a pergunta “tu és gremista ou sofredor?”, mas em nossa adolescência descobrimos que nós é que havíamos nos tornado os sofredores. Hoje, somos tão pessimistas que ainda não confiamos que 2016 será um ano bom: ainda achamos que o Inter vai se salvar e que vamos perder a Copa do Brasil.

Pode ser que sim. Pode ser que o Inter, novamente, ainda ria por último. Mas eu vou te dizer algo, com toda a sinceridade, e sei que tu não vais acreditar em mim: talvez seja melhor cair. Talvez seja necessário chutar toda essa soberba para bem longe. Se o Inter ficar na Série A, será a vitória daqueles que tapam o sol com a peneira. Eu aposto contigo: caso o rebaixamento não aconteça, teu sofrimento de 2016 rapidamente será varrido para baixo do tapete, logo só se falará no décimo aniversário do Mundial (em 2003, falávamos no centenário do Grêmio), e nada vai mudar de verdade. O choque de realidade não virá – e o caminho pelo deserto será ainda mais longo. E talvez o rebaixamento venha igual, um pouco mais adiante. Depois do nosso 2003, afinal, houve um 2004.

Se cair, tu nunca mais serás o mesmo, é verdade. Muitas das tuas certezas irão por terra. A Série B nunca sai de nós. Mas, se o Grêmio seguir sem ganhar nada, tua jornada pelo inferno será ainda mais tranquila do que a minha foi – nosso pior momento, afinal, coincidiu com a melhor fase de vocês. E não vai ser um gremista da minha geração que vai prever que vamos começar a ganhar tudo a partir de agora. De todo modo, esteja ciente: times grandes caem sim, meu amigo. E, às vezes, a grandeza está em provar que conseguimos nos levantar de novo.

Um abraço.

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